quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A supremacia de Shiva



Essa história é relatada por Brahma em resposta a uma indagação dos deuses e dos rishis:

"Na noite de Brahma, quando todos os seres e todos os mundos estavam firmemente juntos em uma quietude única e inseparável, eu vi o grande Narayana, alma do universo, de mil olhos, onisciente, Ser e não-Ser igualmente, reclinar-se sobre as águas informes sustentado pela serpente Infinita de mil cabeças. E eu, iludido por seu encantamento, toquei com a mão o ser eterno e perguntei: 'Quem sois? Dize'. Então ele, o dos olhos de lótus, fitou-me com um olhar quieto, levantou-se sorrindo e disse: 'Bem-vindo, meu filho, tu, brilhante antepassado'. Essas palavras me ofenderam e eu protestei: 'Tu, ó deus sem pecado, me chamas de filho como um professor fala com seu aluno; chama de menino a mim, que sou a causa da criação e da destruição, arquiteto das miríades de mundos, a fonte e a alma de tudo? Explica-me, por que me dizes palavras tolas?' Então Vishnu respondeu: 'Não sabes que eu sou Narayana, criador, preservador e destruidor dos mundos, o eterno varão, a imortal origem e centro do universo? Pois nasceste de meu corpo imperecível'.

"Em seguida, entre aquele mar informe, começamos a discutir raivosamente. Então, para pôr fim à nossa contenda, apareceu diante de nós, maravilhoso e brilhante, um lingam, um pilar ardente, com uma centena de fogos consumidores do universo, sem começo, meio ou fim, incomparável, indescritível. O divino Vishnu, desnorteado com suas milhares de chamas, disse para mim, tão atônito quanto ele: 'Vamos logo procurar saber qual é a fonte desse fogo. Eu descerei. Tu subirás, com todo o teu poder'. Ele transformou-se em um javali de mil léguas de comprimento, como uma montanha de colírio azul, com presas brancas e pontiagudas, um focinho longo, grunhido tonitruante, vitorioso, forte, incomparável — e mergulhou para o fundo. Por mil anos ele ficou mergulhado assim, mas não encontrou a base do lingam. Nesse meio tempo eu me tornei um cisne branco e de olhos ardentes, com asas por todos os lados, rápido como o pensamento e como o vento; e subi durante mil anos procurando encontrar o fim do pilar, mas nada consegui. Então voltei e me deparei com o grande Vishnu, esgotado e pasmo, acabando de subir.

"Então Shiva postou-se diante de nós, a quem seu encantamento havia enganado, inclinamo-nos para ele, enquanto, claro e prolongado, surgiu por todos os lados o som articulado de Om Narayana lhe disse: 'Nossa luta foi feliz, ó Deus dos deuses, uma vez que apareceste para encerrá-la'. Shiva respondeu para Vishnu: 'És de fato o criador, o preservador e o destruidor dos mundos; tu, meu filho, manténs este mundo tanto inerte quanto em movimento. Pois eu, o indiviso Senhor Supremo, sou três: sou Brahma, Vishnu e Rudra, o que cria, o que mantém e o que destrói. Trata com carinho esse Brahma, pois ele nascerá de ti numa idade vindoura. Então vós, os dois, me fitareis novamente'. Dito isso o Grande Deus desapareceu. A partir de então estabeleceu-se nos três mundos o culto do lingam."


ANANDA K. COOMARASWAMY IRMÃ NIVEDITA, MITOS HINDUS E BUDISTAS, pag 208